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domingo, 30 de setembro de 2012

DE OLHO NO FUTURO: FICÇÃO CIENTÍFICA PARA DEBATER QUESTÕES SOCIO-POLÍTICAS DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA EM SALA DE AULA

DE OLHO NO FUTURO: FICÇÃO CIENTÍFICA 
"Como Debater Questões Sociopolíticas de Ciência e Tecnologia em Sala de Aula"


DE OLHO NO FUTURO: FICÇÃO CIENTÍFICA 
"Como Debater Questões Sociopolíticas de Ciência e Tecnologia em Sala de Aula"
Luís Paulo Piassi

Maurício Pietrocola

Introdução

A ficção científica vem sendo

considerada por diversos autores como

um recurso didático no ensino de ciências

capaz de despertar o interesse dos

estudantes por temas de ciências e facilitar

o desenvolvimento de conceitos em sala de

aula. Porém, mais do que um recurso

didático adicional, a ficção científica

deveria ser encarada como um discurso

social sobre a ciência que expressa

questões, interesses e preocupações atuais

a respeito do desenvolvimento científico e

tecnológico.

Neste trabalho apresentamos uma

abordagem de análise de obras de ficção

científica que busca colocar em evidência

as questões sociopolíticas a respeito da

ciência e da tecnologia presentes em uma

obra de ficção e apresentar caminhos para

a abordagem dessas questões em sala de

aula. Para isso, usamos como exemplo

contos de ficção científica de três autores

que utilizamos como material para

atividades em sala de aula.

1. O futuro, visto do presente

Ingressar no silêncio que era a

cidade às oito de uma noite enevoada

de novembro, por os pés

na calçada irregular de concreto,

evitando pisar nas fendas onde

crescia o mato e ir em frente,

mãos nos bolsos, através dos silêncios,

era o que o senhor Leonard

Mead mais gostava de fazer

(Bradbury, 1979, p. 18).

Em 2053 dC, entretanto, esse é um

comportamento anormal, pois todos

deveriam estar em casa, assistindo suas

TVs, segundo nos conta Ray Bradbury no

conto O Pedestre. Leonard Mead vê-se

em apuros quando uma viatura de polícia

interpela-o durante um desses passeios.

Em poucas páginas, Bradbury nos insere

de forma contundente em

questionamentos sobre os caminhos da

tecnologia e onde ela pode nos levar. É

sobre o futuro que esse conto, escrito em

1951, está falando? Não exatamente.

Poderíamos dizer mais precisamente que

está trazendo possíveis tendências futuras

colocadas pelas questões do momento

histórico em que foi escrito. Segundo

Jameson (2005, p. 345), “a ficção

científica é entendida geralmente como a

tentativa de imaginar futuros

inimagináveis. Mas seu assunto mais

profundo pode ser de fato nosso próprio

presente histórico”.

A idéia de que a ficção científica (FC)

pode ter um papel no ensino de ciências

data praticamente da origem moderna do

gênero, sendo considerada como veículo

de divulgação científica e às vezes como

Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007

possuindo finalidades educacionais

explícitas (Fiker,1985, p. 41). No ensino

formal, o uso da ficção científica vem

sendo sugerido por diversos autores, como

Dubcek (1990, 1993, 1998), que propõe a

utilização de filmes para ilustrar ou

apresentar conceitos e fenômenos

científicos. Outros, como Nauman e Shaw

(1994), vão além da abordagem de

conceitos, propondo a leitura de histórias

de ficção científica também para abordar

questões sociais envolvendo a ciência e a

tecnologia. Para eles:

O gênero pode fornecer para as

crianças e igualmente para os

adultos uma janela para o futuro,

um meio de prever como a

vida poderia ser em alguma data

no futuro. O estudo da história

conta-nos como eventos no passado

afetaram o presente; a ficção

científica nos dá uma idéia

de como as decisões que fazemos

agora, podem afetar nossas vidas

no futuro (Nauman e Shaw,

1994, p.18).

Shaw e Dybdahl (2000) preocupamse

com a forma como a ciência é expressa

na mídia em geral e na FC em particular,

propondo seu uso em sala de aula,

incluindo atividades sobre a relação

ciência, tecnologia e sociedade (CTS).

Rose (2003) aborda a discussão de

diversas obras, como Jurassic Park, Os

meninos do Brasil, O sexto dia, entre

outras, e explica:

Como professor de ciência, sempre

estive desafiado a encontrar

formas de engajar estudantes

não ligados à ciência no aprendizado

de como e porque a ciência

é realizada. Com esse fim, desenvolvi

um curso de ciência geral

denominado “A Biologia nos Filmes”,

que emprega filmes baseados

na biologia como um ponto

de partida para discutir idéias

fundamentais, técnicas e implicações

sociais de tópicos tais como

a clonagem humana, manipulação

genética, origens do homem

e evolução, inteligência artificial

e recombinação de animais

(Rose, 2003, p. 289).

Brake e Thornton (2001), por sua

vez, dão destaque específico para a relação

entre ciência, cultura e sociedade:

Comercialmente a ficção

científica possui uma

história impressionante e,

visto que para muitas

pessoas a principal

exposição à ciência se dá

através da ficção científica,

tanto as visões sobre os

cientistas quanto as

relativas à natureza da

atividade científica são de

crucial importância para

questões relacionadas às

atitudes públicas perante a

ciência (Brake e Thornton,

2001, p. 32).

Assim, diversos autores identificam

na FC a veiculação das preocupações

humanas que a ciência e a tecnologia

suscitam, tornado-a um canal para a

abordagem não apenas de fenômenos e

leis científicas, mas da própria natureza da

atividade científica e tecnológica e de sua

relação com a sociedade.

2. Os pólos temáticos




A relação da FC com as questões

Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007

sócio-políticas de ciência e tecnologia

(C&T) é intensa e imbricada. Se as

preocupações sociais geraram a FC, a

própria FC é geradora de questões que se

estabelecem socialmente a até influem na

própria atividade científica. Para

Parrinder:

A ficção científica veio a ser reconhecida

como um gênero literário

distinto, em grande parte por

tão insistentemente ter se ‘imposto’

como um fenômeno social. Sociólogos,

psicólogos, historiadores

de idéias e cientistas políticos

começaram a se voltar para ela

assumindo que se tratava de um

importante aspecto do ‘sinal dos

tempos’. Não foram seus escritores

que previram a bomba atômica,

o pouso na Lua, e a crescente

influência da pesquisa e do

desenvolvimento sobre as flutuações

da política mundial? Não foi

a ficção científica uma inescapável

projeção de anseios e receios

a respeito da direção para a qual

a sociedade está se movendo?

(Parrinder, 1980, p. xiv)

Sendo a ciência tão importante na

nossa vida, tendo em si um estatuto de

verdade sobre as coisas do mundo natural

e social, é natural que uma expressão

artística que se aproprie da retórica de

verdade da ciência para tratar de questões

que cercam a ciência, também adquira

uma repercussão social correspondente.

Uma força inclusive de questionar a

própria ciência, tendência comum hoje em

histórias de FC. Parrinder, vendo a FC

como projeção de nossos anseios e receios

em relação à ciência e tecnologia, dá uma

chave importante de análise sobre a qual

podemos trabalhar. Elaboramos um

esquema de polaridades a partir do qual

procuramos estabelecer as posições

veiculadas em diversas obras, tanto em

termos de anseios, como de receios.

No nosso entender, essa análise pode

ser feita a partir de dois planos

fundamentais: o existencial-filosófico e o

material-econômico. Tomemos como

exemplo dois tópicos muito comuns em

FC: discos voadores e super-heróis. Os

discos voadores são a representação de um

anseio, que é a busca do “outro”. Um

“outro” não-humano que é ao mesmo

tempo humano porque racional e

inteligente, e que por isso mesmo nos

apresenta possibilidades excitantes e

assustadoras. Trata-se de uma motivação

ligada a conhecer o mundo, a conhecer-se,

de ir além e superar os limites existenciais

presentes. Aqui temos o plano existencialfilosófico,

onde a ciência é associada com o

conhecimento do cosmo e do ser humano,

com a possibilidade de obtenção de

respostas existenciais para as buscas mais

profundas da humanidade. Os superheróis,

por outro lado, possuem poderes

para suprimir ou atenuar ameaças. A

concepção de que seria possível, por

exemplo, ficar invisível ou criar um campo

de forças intransponível é, antes de tudo, a

idéia de que podemos contar com

instrumentos que nos ajudam a enfrentar

as agruras do mundo. Temos aqui o plano

material-econômico que associa C&T ao

conforto e bem-estar, a vencer as

dificuldades e ao domínio da natureza.

Em cada um dos planos, podemos

identificar uma polaridade de valores,

representando do lado positivo,

expectativas, anseios e entusiasmo (pólo

dos anseios) e do lado negativo,

preocupações, descrenças e receios (pólo

Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007

dos receios). No plano materialeconômico,

temos como associação

positiva C&T como provedoras de soluções

cada vez melhores para a qualidade de

vida. Na associação negativa, C&T são

causas da degradação e da piora das

condições gerais de vida da humanidade.

No plano existencial-filosófico, a

associação positiva entende a ciência como

caminho privilegiado para obter respostas

sobre o cosmo, a natureza humana e

questões gerais do gênero, e na negativa,

como incapaz de fornecer as respostas

importantes para a humanidade cabendo

esse papel a outras formas de

conhecimento. O diagrama a seguir

resume essas idéias.

FILOSÓFICO

EXISTENCIAL

MATERIAL

ECONÔMICO

RECEIOS

MEDOS, NEGAÇÃO

ANSEIOS

DESEJOS, ADESÃO

Tecnologia

Ciência Pura

CCIIÊÊNCIIA

Ciência incapaz de responder

às questões mais essenciais da

existência humana

Ciência como conhecimento privilegiado

trazendo respostas fundamentais

à curiosidade humana

Ciência trazendo prejuízos à vida

humana e colocando em risco nossa

sobrevivência e bem-estar.

Ciência útil, voltada às necessidades

materiais e ao desenvolvimento,

trazendo progresso e conforto material.

Figura 1 – Pólos temáticos

Essa dupla polaridade estabelece

quatro campos que podem ser associados

à percepção pública em relação à ciência e

à tecnologia e que são veiculados de

diversas formas em produtos culturais,

particularmente na FC. A preocupação

com catástrofes ecológicas, por exemplo,

está presente no debate social e aparece na

ficção científica, como um “medo

econômico-material”: o progresso

científico, ao invés de trazer benefícios

estaria resultando em inviabilizar a vida

na Terra. Da mesma forma, cada um dos

pólos define aspectos importantes dos

temas que podemos abordar em sala de

aula e normalmente um conflito entre dois

deles se apresenta mais nitidamente como

pano de fundo no discurso das obras de

FC.

3. Conflitos e questões

A identificação dos pólos temáticos

ganha sentido no contexto de uma análise

Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007

mais geral da obra. Em outro trabalho

(Piassi e Pietrocola, 2006), propusemos a

análise de conflitos entre personagens

como ponto de partida na identificação de

questões para debate. Apresentaremos

agora uma associação entre pólos

temáticos e conflitos que permite mapear

discussões sociopolíticas, partindo de

contos de FC que usamos em aulas de

ensino médio (Piassi e Pietrocola, 2007),

em um curso sobre sistemas de

comunicação e informação baseado na

proposta do GREF (1993, p. 231-274). Em

algumas aulas reservávamos um tempo

para ler um conto com a classe e promover

um debate em torno das questões que ele

apresentava. As histórias foram extraídas

dos livros Sonhos de Robô de Isaac

Asimov (1991), Os Frutos Dourados do

Sol de Ray Bradbury (1979) e O Vento

Solar de Arthur C. Clarke (1976),

indicados respectivamente por A, B, e C na

tabela abaixo.

Obr

a

Conto Tema

A

A1 Sonhos de robô

Um robô começa a sonhar e acaba sendo

eliminado por suas criadoras

A2

A mulher da minha

vida

Um programador usa o computador

para encontrar a mulher ideal.

A3 A sensação de poder

Técnico do futuro reinventa a aritmética e

suicida-se ao vê-la usada na guerra.

B

B1 Máquina de voar

Imperador chinês da antiguidade manda

executar o inventor da máquina voadora

B2 O pedestre

Rapaz do futuro é detido por caminhar à noite

pelas ruas, ao invés de ver televisão.

B3 O assassino

Cidadão é detido por destruir os onipresentes

aparelhos sonoros.

C

C1 O alimento dos deuses

Alimentos 100% sintéticos causam polêmica

sobre antropofagia

C2

Frankenstein ao

telefone

Rede mundial de comunicações por satélite

resolve assumir o comando do planeta

C3 Cruzada

Seres de hélio líquido se questionam sobre

inteligência em outros planetas.

Iniciaremos a discussão com o conto

O Pedestre de Ray Bradbury, em uma

análise que pode ser estendida às outras

histórias. O Pedestre pouco tem a ser

aproveitado do ponto de vista conceitual já

que não traz explicitamente conceitos de

eletricidade ou leis e fenômenos relativos

ao funcionamento do televisor. Porém, o

próprio programa do curso, ao propor a

investigação de elementos tecnológicos,

estabelece a possibilidade de ingressarmos

em questões do âmbito sócio-político.

Diríamos até que, em uma abordagem

desse gênero, examinar aparelhos e

discutir seu funcionamento sem realizar

uma discussão mais ampla ligada ao seu

significado social é um contra-senso. O

que a história nos fornece é um papel

social imaginado do televisor, mas que

necessariamente se assenta no aspecto

conceitual fenomenológico que é a base

epistemológica para a existência do

aparelho e, portanto, para seu uso social e

seu valor cultural.

Uma interpretação puramente literal

– como muitas vezes se faz no uso da

Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007

ficção no ensino – não é o caminho mais

adequado de análise, pois o discurso da

história não está afirmando que em um

futuro previsível todas as pessoas ficarão

confinadas em casa vendo TV. A questão

do conto talvez pudesse ser colocada

como: a tecnologia serve para nos libertar

ou para nos escravizar? O mais

interessante, entretanto é não delimitar a

questão de forma tão absoluta, mas

verificar as possibilidades de discussão

que a história nos traz, com suas diversas

nuances. Uma pré-análise, antes de levar a

obra para a sala de aula visa identificar

tais possibilidades. Nesse conto temos um

conflito entre o pedestre e o policial. O que

ele representa? É a expressão de algum

receio ou anseio? Que posições ideológicas

cada parte da disputa representa? Quais

são seus argumentos? O narrador assume

uma posição implícita a favor de algum

dos lados da disputa? Quem é o vencedor

da disputa? Podemos mapear os principais

aspectos desta análise através de um

diagrama:

Figura 2 – Diagrama de disputa

Nesse diagrama, colocamos nas

colunas laterais os lados da disputa, aos

quais podemos associar personagens.

Listamos argumentos que sustentam sua

posição em relação à disputa, contra ou a

favor. Também colocamos os

procedimentos adotados pelo personagem

que resultaram no conflito, alguns dos

quais constituem uma violação no sentido

em que vão contra leis ou valores em

relação às posições do oponente. Tudo isso

nos permite, junto com os outros itens do

diagrama associar cada personagem a um

dos quatro pólos temáticos e a uma

instituição social em nível mais geral, que

é representada alegoricamente pela voz de

um personagem.

A forma do embate entre eles

também pode ser explicitada – se eles

empregam argumentação, da autoridade,

da força e qual deles detém o poder sobre

o outro. A relação de poder é indicada

pelas flechas, mostrando que tipo de

suporte cada personagem utiliza na

Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007

disputa: argumentação, força policial,

autoridade, violência e assim por diante.

Um dos personagens pode ser um herói,

no sentido em que se procura no texto

estabelecer uma empatia e identificação de

sua posição com o leitor implícito. Um

deles, em geral, é o vitorioso na disputa,

que pode ou não ser o herói. No diagrama,

indicamos o vitorioso por uma borda

dupla e o herói pelo fundo acinzentado.

Com esse mapeamento torna-se possível

construir roteiros de debates em torno dos

conteúdos do conto. Um processo

certamente interessante é procurar

associar a posição de cada personagem aos

seus interesses específicos. Mais

interessante ainda é buscar relações entre

os debates apresentados na história e os

debates sociais existentes no contexto da

sua produção. O conflito em O Pedestre

poderia ser representado pelo diagrama:

Figura 3 – Diagrama de disputa em “O Pedestre”

A interpretação do diagrama parte da

idéia de que o conto expressa um receio,

de que um aparelho como a TV possa

converter-se de diversão em obrigação,

talvez uma forma de dominação.

Poderíamos partir de um desejo, como a

vontade de todos possuírem TV,

lembrando que o conto é de 1951.

Acreditamos, porém, que o foco do conto é

o receio. A polaridade que se estabelece

aqui é se a TV pode responder a

necessidades humanas de entretenimento

(pólo dos anseios materiais) ou se ela

serve como elemento de dominação das

massas (pólo dos receios materiais).

Leonard Mead representa um herói

associado ao pólo dos receios materiais

(não precisamos de TV). A polícia

Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007

representa o pólo oposto. Há um

confronto entre a liberdade civil do

cidadão e a dominação do Estado, apoiado

em instrumentos de C&T.

O efeito


polêmico do conto se dá pela internação

de Mead em um “Centro Psiquiátrico de

Pesquisa em Tendências Regressivas”

(Bradbury, 1979, p. 22), que provoca a

indignação do leitor e margem para a

discussão das questões que o conto

apresenta. O debate que ele apresenta, é

um debate do “hoje” de 1951, que a nosso

ver permanece atual.

Assim como em O Pedestre, todos

os contos da lista trazem uma questão

polêmica bastante evidente, que ocorre em

torno de algum conflito. Em Sonhos de

Robô, por exemplo, temos uma história

curta e intensa que gera uma polêmica: o

robô Elvex que começa a sonhar com

liberdade é “morto” com uma pistola laser

pela robopsicóloga Susan Calvin. Uma

típica história sobre o medo das máquinas

dominarem os seres humanos. Porém,

aqui, a máquina é, ao mesmo tempo,

vítima e herói. Ela não teria direito à vida

uma vez consciente e capaz de sonhar?

Como em O Pedestre, temos aqui uma

disputa entre os pólos dos anseiosmateriais

(queremos máquinas para

substituir o trabalho humano) e o dos

receios-materiais (as máquinas podem

começar a ganhar uma autonomia além do

desejável), que poderíamos representar

em um diagrama de pólos temáticos (ver

figura 1):

Figura 4 – Pólos temáticos na disputa entre Elvex e Calvin

O que ocorre no final de uma história

dessas é que alguns alunos acham que a

destruição de uma máquina consciente é

uma atitude eticamente deplorável,

enquanto outros tendem a considerar o

robô como uma mera máquina. Trata-se,

portanto, de uma questão ética, que está,

de alguma forma, presente em todas essas

histórias. É interessante, nesse tipo de

conto, o equilíbrio existente entre uma

dimensão de alegoria (robôs e

personagens como representação) e

conjectura (as possibilidades imaginadas

em um futuro com robôs). Do ponto de

vista alegórico, é praticamente evidente a

associação com a relação senhor-escravo,

na qual este é considerado um objeto, uma

propriedade e na qual o medo da revolta é

uma constante. Mas essa interpretação

não nega a possibilidade que está no plano

literal – a de produzir máquinas que

possuam um nível de consciência. O que

fazer então? O significado alegórico nos

lembra do que, na história da

humanidade, foi feito. Há fases de

exploração brutal, mas há lutas e

conquista de reconhecimento de direitos

também. Isso tudo, por outro lado, leva a

uma outra questão – devemos criar

máquinas conscientes? Há argumentos

Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007

favoráveis e contrários e o debate que se

estabelece em torno desta história é

caloroso.

Uma história de Bradbury que gera

uma polêmica parecida é A Máquina de

Voar, na qual um imperador chinês do ano

400 d.C. manda executar o homem que

construiu um artefato de papel e bambu

que o permite voar. Reconhecendo a

beleza e as possibilidades da máquina,

ainda assim diz o imperador:– Mas há

momentos – disse o Imperador, mais

tristemente ainda – em que devemos abrir

mão de uma beleza se desejamos preservar

a pequena beleza que já temos. Não é a ti

que eu temo, mas a um outro homem.

Que homem?

Um outro homem que, vendo-te,

construirá um aparelho de papel

colorido e bambu, como este.

Mas este outro homem terá um

rosto cruel e um coração cruel, e

a beleza desaparecerá. É esse homem

que eu temo (Bradbury,

1979, p. 73).

Aqui, novamente aparece a questão:

a descoberta deve ser levada adiante?

Quais as conseqüências? No entanto, há

diferenças interessantes e fundamentais. A

primeira delas vem do fato evidente que a

história é situada no passado. A

conjectura, se houvesse alguma, seria

sobre a possibilidade de uma máquina

voadora ter sido descoberta no passado.

Essa interpretação, no entanto, é ingênua,

pois não há nada no conto que sugira esse

caminho. Aqui Bradbury claramente usa

uma alegoria. Muitas vezes na leitura

desse conto houve alunos que perceberam

uma possível relação entre a máquina de

voar e a bomba atômica, cuja criação, a

adotarmos a lógica do Imperador, deveria

ter sido sustada. Ao situar a história no

passado e usar uma máquina semelhante a

algo existente hoje (o avião), Bradbury dá

também força ao argumento contrário: de

que adianta tentar suspender as

pesquisas? Uma hora alguém vai acabar

conseguindo desenvolver o artefato. Mas o

argumento também pode jogar no sentido

oposto – ao menos o imperador conseguiu

postergar por 1500 anos o

desenvolvimento da máquina – não seria

melhor que isso ocorresse também à

bomba? O interessante é que a discussão

pode se encaminhar para a formulação de

hipóteses sobre o que teria acontecido se

os chineses dominassem o vôo naquela

época (ou se nós não dominássemos a

tecnologia nuclear).

Tanto Sonhos de Robô quanto A

Máquina de Voar nos falam dos medos

da tecnologia e do mal que ela pode nos

trazer e, nesse sentido, se aproximam.

Também em ambos há uma ação

preventiva: os fatos em si não representam

perigo, mas um personagem percebe que

eles podem vir a configurar um problema

futuro e tomam medidas extremas. As

ações drásticas e fulminantes, com a

execução do herói no final das histórias

curtas é que constituem o efeito polêmico

que causa um choque no leitor e faz pensar

se o executor agiu corretamente ou não. A

execução em si é certamente algo ruim e

chocante, mas os contos jogam com a idéia

de que a ameaça justifica a ação –

lembrando que há atenuantes nos dois

casos: no primeiro o ser destruído é uma

máquina, no segundo é o contexto

histórico no qual a execução é uma prática

aceita.

Mas há algumas diferenças

fundamentais. No conto de Asimov temos

os primeiros indícios de que a máquina

Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007

pode assumir o controle. Em Bradbury, a

responsabilidade é do ser humano – ele é

quem pode manipular a máquina. Mais

importante do que isso: em A Máquina

de Voar há a supressão completa de um

processo tecnológico – para o imperador

as máquinas só são válidas para puro

desfrute. O homem voador viola o

equilíbrio natural das coisas ao propor que

as pessoas voem e é incapaz de perceber

todas as conseqüências do seu ato. No

conto de Asimov, a situação é bem

diferente. Susan Calvin é a representante

por excelência da ciência e da tecnologia e

está procurando evitar desvios.

Em termos de interpretação

alegórica, em Sonhos de Robô parece

que somos levados para fora da discussão

científica, porque a relação escravo-senhor

estabelece direitos para a máquina, coisa

que não faz sentido no conto de Bradbury.

Asimov nos lança a uma área externa ao

âmbito da ciência, que é a área das

relações sociais, das relações de

dominação, enquanto A Máquina de

Voar usa a ciência como alegoria da

própria ciência com figuras e figurantes

dentro do mesmo paradigma semiótico (a

ciência, o homem de ciência, o estado, o

homem do estado). Podemos fazer um

pequeno esquema de figurante-figurado

para os dois contos:

A máquina de voar Sonhos de robô

Figurante Figurado Figurante Figurado

Imperador Estado Humanos Senhores

Inventor Cientistas Robôs Escravos

Máquina de voar Bomba atômica Ciência Leis

Uma questão interessante que advém

da análise desses dois contos é a da

relação humano – máquina. Como essa

relação é encarada em cada caso? Em

Sonhos de Robô, poderíamos caminhar

da total antropomorfização alegórica do

robô para um sentido mais gradual onde

propuséssemos a reflexão sobre a

existência da necessidade de tornar as

máquinas parecidas conosco e de encarálas

como algo que trabalha por nós, que

satisfaz as nossas necessidades. Mas a

partir disso, podemos ter problemas e as

máquinas podem se tornar um incômodo

imenso, como ocorre em O Pedestre, O

Assassino, Frankenstein ao

Telefone. Também há a questão da

superação do ser humano, ou de seu

gradual declínio, que aparece no já

mencionado A Mulher da Minha Vida

e também em A Sensação de Poder,

onde as pessoas não sabem mais efetuar

cálculos simples. Curiosamente, esse conto

retoma a idéia presente em A Máquina

de Voar, onde um conhecimento é usado

para a guerra. Só que agora, o

conhecimento é o cálculo com lápis e

papel e não uma máquina.

Como vemos, a partir da discussão

travada em um dos contos podemos

encontrar elementos para discussão em

outros, que abordam o mesmo tema sob

um outro ponto de vista. Como se trata de

histórias e autores diferentes, também

temos formas diferentes de encarar as

questões e posições distintas assumidas

implicitamente por cada um deles, o que

dá uma riqueza ao debate. O jogo

Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007

constante entre as histórias e também

entre interpretações literais e alegóricas dá

combustível para vários debates. Na

atividade, as discussões giraram em torno

de temas que apareciam em diversos

contos, que resumimos na tabela a seguir.

Os contos e os pólos do conflito

Tema de discussão

A1 A2 A

3

B1 B2 B

3

C1 C2 C3

Mal uso da tecnologia × × × ×

Visão inconseqüente do

cientista

× × × × ×

O que é a inteligência? × × × ×

Uma máquina pode sentir? × × × ×

As máquinas superam os

humanos

× × × ×

A tecnologia oprime as pessoas × × ×

Qual a função da tecnologia? × × × × × ×

Limites éticos das descobertas × × × × × ×

Na tabela indicamos também os

pólos temáticos do conflito central da

história. Na maioria das vezes, a disputa se

dá entre os dos receios-materiais e dos

anseios materiais, que indicamos com o

ícone presente em A1, mas em outros

casos as oposições são outras. Os ícones

representam, de acordo com o diagrama

da figura 1, os pólos em oposição em cada

disputa. É no entrelaçamento entre as

disputas nas várias histórias que podemos

abordar os diversos tópicos de discussão

sob diferentes pontos de vista.

Considerações finais




Se acreditarmos que um aluno não

deveria sair do ensino básico sem ter

alguma vez travado contato, por exemplo,

com a discussão sobre as armas nucleares

temos que pensar também que aspectos

dessa discussão têm que ser levados à sala

de aula e qual é o papel específico que cabe

ao professor de ciência nesse processo.

Como as questões sociais não estão

desvinculadas dos aspectos técnicocientíficos,

é necessário que o professor

com formação científica tenha que

participar desse debate que é,

naturalmente, interdisciplinar. A ficção

científica, mais do que se fixar no aspecto

das leis naturais envolvidas na bomba

atômica ou de qualquer outro tema,

suscita um debate sobre as implicações

sociais das possíveis descobertas,

invenções e fenômenos concebíveis. Põe

em questão a tecnologia, que é

fundamental na vida, que está

visceralmente ligada à ciência. O uso da

ficção científica é um meio de tratar de

questões sociais e tecnológicas sem

ensinar tecnologia, sem converter o

ensino de ciências em um curso de

tecnologia, mas enfocando-o como uma

reflexão sobre o presente para um pensaragir

no futuro.

Nessa atividade, o interesse no

debate foi muito mais intenso e a própria

Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007

vontade de falar sobre as histórias foi

muito grande. Acreditamos que isso se

deve à temática discutida, que

relativamente livre e dizia respeito a

questões abrangentes. Mas também pode

se dever ao fato de tratar os contos como

tais, como obras a serem discutidas e

analisadas do ponto de vista crítico, do

sabor da leitura, dos temas que propõem e

de sua engenhosidade e sua arte na forma

de abordá-los.

Uma seqüência de pesquisa será o

desenvolvimento desse trabalho com

professores, verificando a possibilidade de

uma formação que permita ao professor

selecionar uma obra de ficção, identificar

nela temas de discussões sociopolíticas em

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dela extrair as diversas possibilidades de

exploração do debate em sala de aula.

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uís Paulo Piassi é professor da Escola de

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Paulo, SP. E-mail: lppiassi@usp.br

Maurício Pietrocola é professor da Faculdade

de Educação da USP, São Paulo, SP. E-mail:
mpietro@usp.br

Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007



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