"Como Debater Questões Sociopolíticas de Ciência e Tecnologia em Sala de Aula"
DE OLHO NO FUTURO: FICÇÃO CIENTÍFICA
"Como Debater Questões Sociopolíticas de Ciência e Tecnologia em Sala de Aula"
Luís Paulo Piassi
Maurício Pietrocola
Introdução
A ficção científica vem sendo
considerada por diversos autores como
um recurso didático no ensino de ciências
capaz de despertar o interesse dos
estudantes por temas de ciências e facilitar
o desenvolvimento de conceitos em sala de
aula. Porém, mais do que um recurso
didático adicional, a ficção científica
deveria ser encarada como um discurso
social sobre a ciência que expressa
questões, interesses e preocupações atuais
a respeito do desenvolvimento científico e
tecnológico.
Neste trabalho apresentamos uma
abordagem de análise de obras de ficção
científica que busca colocar em evidência
as questões sociopolíticas a respeito da
ciência e da tecnologia presentes em uma
obra de ficção e apresentar caminhos para
a abordagem dessas questões em sala de
aula. Para isso, usamos como exemplo
contos de ficção científica de três autores
que utilizamos como material para
atividades em sala de aula.
1. O futuro, visto do presente
Ingressar no silêncio que era a
cidade às oito de uma noite enevoada
de novembro, por os pés
na calçada irregular de concreto,
evitando pisar nas fendas onde
crescia o mato e ir em frente,
mãos nos bolsos, através dos silêncios,
era o que o senhor Leonard
Mead mais gostava de fazer
(Bradbury, 1979, p. 18).
Em 2053 dC, entretanto, esse é um
comportamento anormal, pois todos
deveriam estar em casa, assistindo suas
TVs, segundo nos conta Ray Bradbury no
conto O Pedestre. Leonard Mead vê-se
em apuros quando uma viatura de polícia
interpela-o durante um desses passeios.
Em poucas páginas, Bradbury nos insere
de forma contundente em
questionamentos sobre os caminhos da
tecnologia e onde ela pode nos levar. É
sobre o futuro que esse conto, escrito em
1951, está falando? Não exatamente.
Poderíamos dizer mais precisamente que
está trazendo possíveis tendências futuras
colocadas pelas questões do momento
histórico em que foi escrito. Segundo
Jameson (2005, p. 345), “a ficção
científica é entendida geralmente como a
tentativa de imaginar futuros
inimagináveis. Mas seu assunto mais
profundo pode ser de fato nosso próprio
presente histórico”.
A idéia de que a ficção científica (FC)
pode ter um papel no ensino de ciências
data praticamente da origem moderna do
gênero, sendo considerada como veículo
de divulgação científica e às vezes como
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possuindo finalidades educacionais
explícitas (Fiker,1985, p. 41). No ensino
formal, o uso da ficção científica vem
sendo sugerido por diversos autores, como
Dubcek (1990, 1993, 1998), que propõe a
utilização de filmes para ilustrar ou
apresentar conceitos e fenômenos
científicos. Outros, como Nauman e Shaw
(1994), vão além da abordagem de
conceitos, propondo a leitura de histórias
de ficção científica também para abordar
questões sociais envolvendo a ciência e a
tecnologia. Para eles:
O gênero pode fornecer para as
crianças e igualmente para os
adultos uma janela para o futuro,
um meio de prever como a
vida poderia ser em alguma data
no futuro. O estudo da história
conta-nos como eventos no passado
afetaram o presente; a ficção
científica nos dá uma idéia
de como as decisões que fazemos
agora, podem afetar nossas vidas
no futuro (Nauman e Shaw,
1994, p.18).
Shaw e Dybdahl (2000) preocupamse
com a forma como a ciência é expressa
na mídia em geral e na FC em particular,
propondo seu uso em sala de aula,
incluindo atividades sobre a relação
ciência, tecnologia e sociedade (CTS).
Rose (2003) aborda a discussão de
diversas obras, como Jurassic Park, Os
meninos do Brasil, O sexto dia, entre
outras, e explica:
Como professor de ciência, sempre
estive desafiado a encontrar
formas de engajar estudantes
não ligados à ciência no aprendizado
de como e porque a ciência
é realizada. Com esse fim, desenvolvi
um curso de ciência geral
denominado “A Biologia nos Filmes”,
que emprega filmes baseados
na biologia como um ponto
de partida para discutir idéias
fundamentais, técnicas e implicações
sociais de tópicos tais como
a clonagem humana, manipulação
genética, origens do homem
e evolução, inteligência artificial
e recombinação de animais
(Rose, 2003, p. 289).
Brake e Thornton (2001), por sua
vez, dão destaque específico para a relação
entre ciência, cultura e sociedade:
Comercialmente a ficção
científica possui uma
história impressionante e,
visto que para muitas
pessoas a principal
exposição à ciência se dá
através da ficção científica,
tanto as visões sobre os
cientistas quanto as
relativas à natureza da
atividade científica são de
crucial importância para
questões relacionadas às
atitudes públicas perante a
ciência (Brake e Thornton,
2001, p. 32).
Assim, diversos autores identificam
na FC a veiculação das preocupações
humanas que a ciência e a tecnologia
suscitam, tornado-a um canal para a
abordagem não apenas de fenômenos e
leis científicas, mas da própria natureza da
atividade científica e tecnológica e de sua
relação com a sociedade.
2. Os pólos temáticos
A relação da FC com as questões
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sócio-políticas de ciência e tecnologia
(C&T) é intensa e imbricada. Se as
preocupações sociais geraram a FC, a
própria FC é geradora de questões que se
estabelecem socialmente a até influem na
própria atividade científica. Para
Parrinder:
A ficção científica veio a ser reconhecida
como um gênero literário
distinto, em grande parte por
tão insistentemente ter se ‘imposto’
como um fenômeno social. Sociólogos,
psicólogos, historiadores
de idéias e cientistas políticos
começaram a se voltar para ela
assumindo que se tratava de um
importante aspecto do ‘sinal dos
tempos’. Não foram seus escritores
que previram a bomba atômica,
o pouso na Lua, e a crescente
influência da pesquisa e do
desenvolvimento sobre as flutuações
da política mundial? Não foi
a ficção científica uma inescapável
projeção de anseios e receios
a respeito da direção para a qual
a sociedade está se movendo?
(Parrinder, 1980, p. xiv)
Sendo a ciência tão importante na
nossa vida, tendo em si um estatuto de
verdade sobre as coisas do mundo natural
e social, é natural que uma expressão
artística que se aproprie da retórica de
verdade da ciência para tratar de questões
que cercam a ciência, também adquira
uma repercussão social correspondente.
Uma força inclusive de questionar a
própria ciência, tendência comum hoje em
histórias de FC. Parrinder, vendo a FC
como projeção de nossos anseios e receios
em relação à ciência e tecnologia, dá uma
chave importante de análise sobre a qual
podemos trabalhar. Elaboramos um
esquema de polaridades a partir do qual
procuramos estabelecer as posições
veiculadas em diversas obras, tanto em
termos de anseios, como de receios.
No nosso entender, essa análise pode
ser feita a partir de dois planos
fundamentais: o existencial-filosófico e o
material-econômico. Tomemos como
exemplo dois tópicos muito comuns em
FC: discos voadores e super-heróis. Os
discos voadores são a representação de um
anseio, que é a busca do “outro”. Um
“outro” não-humano que é ao mesmo
tempo humano porque racional e
inteligente, e que por isso mesmo nos
apresenta possibilidades excitantes e
assustadoras. Trata-se de uma motivação
ligada a conhecer o mundo, a conhecer-se,
de ir além e superar os limites existenciais
presentes. Aqui temos o plano existencialfilosófico,
onde a ciência é associada com o
conhecimento do cosmo e do ser humano,
com a possibilidade de obtenção de
respostas existenciais para as buscas mais
profundas da humanidade. Os superheróis,
por outro lado, possuem poderes
para suprimir ou atenuar ameaças. A
concepção de que seria possível, por
exemplo, ficar invisível ou criar um campo
de forças intransponível é, antes de tudo, a
idéia de que podemos contar com
instrumentos que nos ajudam a enfrentar
as agruras do mundo. Temos aqui o plano
material-econômico que associa C&T ao
conforto e bem-estar, a vencer as
dificuldades e ao domínio da natureza.
Em cada um dos planos, podemos
identificar uma polaridade de valores,
representando do lado positivo,
expectativas, anseios e entusiasmo (pólo
dos anseios) e do lado negativo,
preocupações, descrenças e receios (pólo
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dos receios). No plano materialeconômico,
temos como associação
positiva C&T como provedoras de soluções
cada vez melhores para a qualidade de
vida. Na associação negativa, C&T são
causas da degradação e da piora das
condições gerais de vida da humanidade.
No plano existencial-filosófico, a
associação positiva entende a ciência como
caminho privilegiado para obter respostas
sobre o cosmo, a natureza humana e
questões gerais do gênero, e na negativa,
como incapaz de fornecer as respostas
importantes para a humanidade cabendo
esse papel a outras formas de
conhecimento. O diagrama a seguir
resume essas idéias.
FILOSÓFICO
EXISTENCIAL
MATERIAL
ECONÔMICO
RECEIOS
MEDOS, NEGAÇÃO
ANSEIOS
DESEJOS, ADESÃO
Tecnologia
Ciência Pura
CCIIÊÊNCIIA
Ciência incapaz de responder
às questões mais essenciais da
existência humana
Ciência como conhecimento privilegiado
trazendo respostas fundamentais
à curiosidade humana
Ciência trazendo prejuízos à vida
humana e colocando em risco nossa
sobrevivência e bem-estar.
Ciência útil, voltada às necessidades
materiais e ao desenvolvimento,
trazendo progresso e conforto material.
Figura 1 – Pólos temáticos
Essa dupla polaridade estabelece
quatro campos que podem ser associados
à percepção pública em relação à ciência e
à tecnologia e que são veiculados de
diversas formas em produtos culturais,
particularmente na FC. A preocupação
com catástrofes ecológicas, por exemplo,
está presente no debate social e aparece na
ficção científica, como um “medo
econômico-material”: o progresso
científico, ao invés de trazer benefícios
estaria resultando em inviabilizar a vida
na Terra. Da mesma forma, cada um dos
pólos define aspectos importantes dos
temas que podemos abordar em sala de
aula e normalmente um conflito entre dois
deles se apresenta mais nitidamente como
pano de fundo no discurso das obras de
FC.
3. Conflitos e questões
A identificação dos pólos temáticos
ganha sentido no contexto de uma análise
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mais geral da obra. Em outro trabalho
(Piassi e Pietrocola, 2006), propusemos a
análise de conflitos entre personagens
como ponto de partida na identificação de
questões para debate. Apresentaremos
agora uma associação entre pólos
temáticos e conflitos que permite mapear
discussões sociopolíticas, partindo de
contos de FC que usamos em aulas de
ensino médio (Piassi e Pietrocola, 2007),
em um curso sobre sistemas de
comunicação e informação baseado na
proposta do GREF (1993, p. 231-274). Em
algumas aulas reservávamos um tempo
para ler um conto com a classe e promover
um debate em torno das questões que ele
apresentava. As histórias foram extraídas
dos livros Sonhos de Robô de Isaac
Asimov (1991), Os Frutos Dourados do
Sol de Ray Bradbury (1979) e O Vento
Solar de Arthur C. Clarke (1976),
indicados respectivamente por A, B, e C na
tabela abaixo.
Obr
a
Conto Tema
A
A1 Sonhos de robô
Um robô começa a sonhar e acaba sendo
eliminado por suas criadoras
A2
A mulher da minha
vida
Um programador usa o computador
para encontrar a mulher ideal.
A3 A sensação de poder
Técnico do futuro reinventa a aritmética e
suicida-se ao vê-la usada na guerra.
B
B1 Máquina de voar
Imperador chinês da antiguidade manda
executar o inventor da máquina voadora
B2 O pedestre
Rapaz do futuro é detido por caminhar à noite
pelas ruas, ao invés de ver televisão.
B3 O assassino
Cidadão é detido por destruir os onipresentes
aparelhos sonoros.
C
C1 O alimento dos deuses
Alimentos 100% sintéticos causam polêmica
sobre antropofagia
C2
Frankenstein ao
telefone
Rede mundial de comunicações por satélite
resolve assumir o comando do planeta
C3 Cruzada
Seres de hélio líquido se questionam sobre
inteligência em outros planetas.
Iniciaremos a discussão com o conto
O Pedestre de Ray Bradbury, em uma
análise que pode ser estendida às outras
histórias. O Pedestre pouco tem a ser
aproveitado do ponto de vista conceitual já
que não traz explicitamente conceitos de
eletricidade ou leis e fenômenos relativos
ao funcionamento do televisor. Porém, o
próprio programa do curso, ao propor a
investigação de elementos tecnológicos,
estabelece a possibilidade de ingressarmos
em questões do âmbito sócio-político.
Diríamos até que, em uma abordagem
desse gênero, examinar aparelhos e
discutir seu funcionamento sem realizar
uma discussão mais ampla ligada ao seu
significado social é um contra-senso. O
que a história nos fornece é um papel
social imaginado do televisor, mas que
necessariamente se assenta no aspecto
conceitual fenomenológico que é a base
epistemológica para a existência do
aparelho e, portanto, para seu uso social e
seu valor cultural.
Uma interpretação puramente literal
– como muitas vezes se faz no uso da
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ficção no ensino – não é o caminho mais
adequado de análise, pois o discurso da
história não está afirmando que em um
futuro previsível todas as pessoas ficarão
confinadas em casa vendo TV. A questão
do conto talvez pudesse ser colocada
como: a tecnologia serve para nos libertar
ou para nos escravizar? O mais
interessante, entretanto é não delimitar a
questão de forma tão absoluta, mas
verificar as possibilidades de discussão
que a história nos traz, com suas diversas
nuances. Uma pré-análise, antes de levar a
obra para a sala de aula visa identificar
tais possibilidades. Nesse conto temos um
conflito entre o pedestre e o policial. O que
ele representa? É a expressão de algum
receio ou anseio? Que posições ideológicas
cada parte da disputa representa? Quais
são seus argumentos? O narrador assume
uma posição implícita a favor de algum
dos lados da disputa? Quem é o vencedor
da disputa? Podemos mapear os principais
aspectos desta análise através de um
diagrama:
Figura 2 – Diagrama de disputa
Nesse diagrama, colocamos nas
colunas laterais os lados da disputa, aos
quais podemos associar personagens.
Listamos argumentos que sustentam sua
posição em relação à disputa, contra ou a
favor. Também colocamos os
procedimentos adotados pelo personagem
que resultaram no conflito, alguns dos
quais constituem uma violação no sentido
em que vão contra leis ou valores em
relação às posições do oponente. Tudo isso
nos permite, junto com os outros itens do
diagrama associar cada personagem a um
dos quatro pólos temáticos e a uma
instituição social em nível mais geral, que
é representada alegoricamente pela voz de
um personagem.
A forma do embate entre eles
também pode ser explicitada – se eles
empregam argumentação, da autoridade,
da força e qual deles detém o poder sobre
o outro. A relação de poder é indicada
pelas flechas, mostrando que tipo de
suporte cada personagem utiliza na
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disputa: argumentação, força policial,
autoridade, violência e assim por diante.
Um dos personagens pode ser um herói,
no sentido em que se procura no texto
estabelecer uma empatia e identificação de
sua posição com o leitor implícito. Um
deles, em geral, é o vitorioso na disputa,
que pode ou não ser o herói. No diagrama,
indicamos o vitorioso por uma borda
dupla e o herói pelo fundo acinzentado.
Com esse mapeamento torna-se possível
construir roteiros de debates em torno dos
conteúdos do conto. Um processo
certamente interessante é procurar
associar a posição de cada personagem aos
seus interesses específicos. Mais
interessante ainda é buscar relações entre
os debates apresentados na história e os
debates sociais existentes no contexto da
sua produção. O conflito em O Pedestre
poderia ser representado pelo diagrama:
Figura 3 – Diagrama de disputa em “O Pedestre”
A interpretação do diagrama parte da
idéia de que o conto expressa um receio,
de que um aparelho como a TV possa
converter-se de diversão em obrigação,
talvez uma forma de dominação.
Poderíamos partir de um desejo, como a
vontade de todos possuírem TV,
lembrando que o conto é de 1951.
Acreditamos, porém, que o foco do conto é
o receio. A polaridade que se estabelece
aqui é se a TV pode responder a
necessidades humanas de entretenimento
(pólo dos anseios materiais) ou se ela
serve como elemento de dominação das
massas (pólo dos receios materiais).
Leonard Mead representa um herói
associado ao pólo dos receios materiais
(não precisamos de TV). A polícia
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representa o pólo oposto. Há um
confronto entre a liberdade civil do
cidadão e a dominação do Estado, apoiado
em instrumentos de C&T.
O efeito
polêmico do conto se dá pela internação
de Mead em um “Centro Psiquiátrico de
Pesquisa em Tendências Regressivas”
(Bradbury, 1979, p. 22), que provoca a
indignação do leitor e margem para a
discussão das questões que o conto
apresenta. O debate que ele apresenta, é
um debate do “hoje” de 1951, que a nosso
ver permanece atual.
Assim como em O Pedestre, todos
os contos da lista trazem uma questão
polêmica bastante evidente, que ocorre em
torno de algum conflito. Em Sonhos de
Robô, por exemplo, temos uma história
curta e intensa que gera uma polêmica: o
robô Elvex que começa a sonhar com
liberdade é “morto” com uma pistola laser
pela robopsicóloga Susan Calvin. Uma
típica história sobre o medo das máquinas
dominarem os seres humanos. Porém,
aqui, a máquina é, ao mesmo tempo,
vítima e herói. Ela não teria direito à vida
uma vez consciente e capaz de sonhar?
Como em O Pedestre, temos aqui uma
disputa entre os pólos dos anseiosmateriais
(queremos máquinas para
substituir o trabalho humano) e o dos
receios-materiais (as máquinas podem
começar a ganhar uma autonomia além do
desejável), que poderíamos representar
em um diagrama de pólos temáticos (ver
figura 1):
Figura 4 – Pólos temáticos na disputa entre Elvex e Calvin
O que ocorre no final de uma história
dessas é que alguns alunos acham que a
destruição de uma máquina consciente é
uma atitude eticamente deplorável,
enquanto outros tendem a considerar o
robô como uma mera máquina. Trata-se,
portanto, de uma questão ética, que está,
de alguma forma, presente em todas essas
histórias. É interessante, nesse tipo de
conto, o equilíbrio existente entre uma
dimensão de alegoria (robôs e
personagens como representação) e
conjectura (as possibilidades imaginadas
em um futuro com robôs). Do ponto de
vista alegórico, é praticamente evidente a
associação com a relação senhor-escravo,
na qual este é considerado um objeto, uma
propriedade e na qual o medo da revolta é
uma constante. Mas essa interpretação
não nega a possibilidade que está no plano
literal – a de produzir máquinas que
possuam um nível de consciência. O que
fazer então? O significado alegórico nos
lembra do que, na história da
humanidade, foi feito. Há fases de
exploração brutal, mas há lutas e
conquista de reconhecimento de direitos
também. Isso tudo, por outro lado, leva a
uma outra questão – devemos criar
máquinas conscientes? Há argumentos
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favoráveis e contrários e o debate que se
estabelece em torno desta história é
caloroso.
Uma história de Bradbury que gera
uma polêmica parecida é A Máquina de
Voar, na qual um imperador chinês do ano
400 d.C. manda executar o homem que
construiu um artefato de papel e bambu
que o permite voar. Reconhecendo a
beleza e as possibilidades da máquina,
ainda assim diz o imperador:– Mas há
momentos – disse o Imperador, mais
tristemente ainda – em que devemos abrir
mão de uma beleza se desejamos preservar
a pequena beleza que já temos. Não é a ti
que eu temo, mas a um outro homem.
Que homem?
Um outro homem que, vendo-te,
construirá um aparelho de papel
colorido e bambu, como este.
Mas este outro homem terá um
rosto cruel e um coração cruel, e
a beleza desaparecerá. É esse homem
que eu temo (Bradbury,
1979, p. 73).
Aqui, novamente aparece a questão:
a descoberta deve ser levada adiante?
Quais as conseqüências? No entanto, há
diferenças interessantes e fundamentais. A
primeira delas vem do fato evidente que a
história é situada no passado. A
conjectura, se houvesse alguma, seria
sobre a possibilidade de uma máquina
voadora ter sido descoberta no passado.
Essa interpretação, no entanto, é ingênua,
pois não há nada no conto que sugira esse
caminho. Aqui Bradbury claramente usa
uma alegoria. Muitas vezes na leitura
desse conto houve alunos que perceberam
uma possível relação entre a máquina de
voar e a bomba atômica, cuja criação, a
adotarmos a lógica do Imperador, deveria
ter sido sustada. Ao situar a história no
passado e usar uma máquina semelhante a
algo existente hoje (o avião), Bradbury dá
também força ao argumento contrário: de
que adianta tentar suspender as
pesquisas? Uma hora alguém vai acabar
conseguindo desenvolver o artefato. Mas o
argumento também pode jogar no sentido
oposto – ao menos o imperador conseguiu
postergar por 1500 anos o
desenvolvimento da máquina – não seria
melhor que isso ocorresse também à
bomba? O interessante é que a discussão
pode se encaminhar para a formulação de
hipóteses sobre o que teria acontecido se
os chineses dominassem o vôo naquela
época (ou se nós não dominássemos a
tecnologia nuclear).
Tanto Sonhos de Robô quanto A
Máquina de Voar nos falam dos medos
da tecnologia e do mal que ela pode nos
trazer e, nesse sentido, se aproximam.
Também em ambos há uma ação
preventiva: os fatos em si não representam
perigo, mas um personagem percebe que
eles podem vir a configurar um problema
futuro e tomam medidas extremas. As
ações drásticas e fulminantes, com a
execução do herói no final das histórias
curtas é que constituem o efeito polêmico
que causa um choque no leitor e faz pensar
se o executor agiu corretamente ou não. A
execução em si é certamente algo ruim e
chocante, mas os contos jogam com a idéia
de que a ameaça justifica a ação –
lembrando que há atenuantes nos dois
casos: no primeiro o ser destruído é uma
máquina, no segundo é o contexto
histórico no qual a execução é uma prática
aceita.
Mas há algumas diferenças
fundamentais. No conto de Asimov temos
os primeiros indícios de que a máquina
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pode assumir o controle. Em Bradbury, a
responsabilidade é do ser humano – ele é
quem pode manipular a máquina. Mais
importante do que isso: em A Máquina
de Voar há a supressão completa de um
processo tecnológico – para o imperador
as máquinas só são válidas para puro
desfrute. O homem voador viola o
equilíbrio natural das coisas ao propor que
as pessoas voem e é incapaz de perceber
todas as conseqüências do seu ato. No
conto de Asimov, a situação é bem
diferente. Susan Calvin é a representante
por excelência da ciência e da tecnologia e
está procurando evitar desvios.
Em termos de interpretação
alegórica, em Sonhos de Robô parece
que somos levados para fora da discussão
científica, porque a relação escravo-senhor
estabelece direitos para a máquina, coisa
que não faz sentido no conto de Bradbury.
Asimov nos lança a uma área externa ao
âmbito da ciência, que é a área das
relações sociais, das relações de
dominação, enquanto A Máquina de
Voar usa a ciência como alegoria da
própria ciência com figuras e figurantes
dentro do mesmo paradigma semiótico (a
ciência, o homem de ciência, o estado, o
homem do estado). Podemos fazer um
pequeno esquema de figurante-figurado
para os dois contos:
A máquina de voar Sonhos de robô
Figurante Figurado Figurante Figurado
Imperador Estado Humanos Senhores
Inventor Cientistas Robôs Escravos
Máquina de voar Bomba atômica Ciência Leis
Uma questão interessante que advém
da análise desses dois contos é a da
relação humano – máquina. Como essa
relação é encarada em cada caso? Em
Sonhos de Robô, poderíamos caminhar
da total antropomorfização alegórica do
robô para um sentido mais gradual onde
propuséssemos a reflexão sobre a
existência da necessidade de tornar as
máquinas parecidas conosco e de encarálas
como algo que trabalha por nós, que
satisfaz as nossas necessidades. Mas a
partir disso, podemos ter problemas e as
máquinas podem se tornar um incômodo
imenso, como ocorre em O Pedestre, O
Assassino, Frankenstein ao
Telefone. Também há a questão da
superação do ser humano, ou de seu
gradual declínio, que aparece no já
mencionado A Mulher da Minha Vida
e também em A Sensação de Poder,
onde as pessoas não sabem mais efetuar
cálculos simples. Curiosamente, esse conto
retoma a idéia presente em A Máquina
de Voar, onde um conhecimento é usado
para a guerra. Só que agora, o
conhecimento é o cálculo com lápis e
papel e não uma máquina.
Como vemos, a partir da discussão
travada em um dos contos podemos
encontrar elementos para discussão em
outros, que abordam o mesmo tema sob
um outro ponto de vista. Como se trata de
histórias e autores diferentes, também
temos formas diferentes de encarar as
questões e posições distintas assumidas
implicitamente por cada um deles, o que
dá uma riqueza ao debate. O jogo
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constante entre as histórias e também
entre interpretações literais e alegóricas dá
combustível para vários debates. Na
atividade, as discussões giraram em torno
de temas que apareciam em diversos
contos, que resumimos na tabela a seguir.
Os contos e os pólos do conflito
Tema de discussão
A1 A2 A
3
B1 B2 B
3
C1 C2 C3
Mal uso da tecnologia × × × ×
Visão inconseqüente do
cientista
× × × × ×
O que é a inteligência? × × × ×
Uma máquina pode sentir? × × × ×
As máquinas superam os
humanos
× × × ×
A tecnologia oprime as pessoas × × ×
Qual a função da tecnologia? × × × × × ×
Limites éticos das descobertas × × × × × ×
Na tabela indicamos também os
pólos temáticos do conflito central da
história. Na maioria das vezes, a disputa se
dá entre os dos receios-materiais e dos
anseios materiais, que indicamos com o
ícone presente em A1, mas em outros
casos as oposições são outras. Os ícones
representam, de acordo com o diagrama
da figura 1, os pólos em oposição em cada
disputa. É no entrelaçamento entre as
disputas nas várias histórias que podemos
abordar os diversos tópicos de discussão
sob diferentes pontos de vista.
Considerações finais
Se acreditarmos que um aluno não
deveria sair do ensino básico sem ter
alguma vez travado contato, por exemplo,
com a discussão sobre as armas nucleares
temos que pensar também que aspectos
dessa discussão têm que ser levados à sala
de aula e qual é o papel específico que cabe
ao professor de ciência nesse processo.
Como as questões sociais não estão
desvinculadas dos aspectos técnicocientíficos,
é necessário que o professor
com formação científica tenha que
participar desse debate que é,
naturalmente, interdisciplinar. A ficção
científica, mais do que se fixar no aspecto
das leis naturais envolvidas na bomba
atômica ou de qualquer outro tema,
suscita um debate sobre as implicações
sociais das possíveis descobertas,
invenções e fenômenos concebíveis. Põe
em questão a tecnologia, que é
fundamental na vida, que está
visceralmente ligada à ciência. O uso da
ficção científica é um meio de tratar de
questões sociais e tecnológicas sem
ensinar tecnologia, sem converter o
ensino de ciências em um curso de
tecnologia, mas enfocando-o como uma
reflexão sobre o presente para um pensaragir
no futuro.
Nessa atividade, o interesse no
debate foi muito mais intenso e a própria
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vontade de falar sobre as histórias foi
muito grande. Acreditamos que isso se
deve à temática discutida, que
relativamente livre e dizia respeito a
questões abrangentes. Mas também pode
se dever ao fato de tratar os contos como
tais, como obras a serem discutidas e
analisadas do ponto de vista crítico, do
sabor da leitura, dos temas que propõem e
de sua engenhosidade e sua arte na forma
de abordá-los.
Uma seqüência de pesquisa será o
desenvolvimento desse trabalho com
professores, verificando a possibilidade de
uma formação que permita ao professor
selecionar uma obra de ficção, identificar
nela temas de discussões sociopolíticas em
C&T e realizar uma análise que permita
dela extrair as diversas possibilidades de
exploração do debate em sala de aula.
Referências
ASIMOV, Isaac. Sonhos de robô. Rio de
Janeiro, Record, 1991.
PIASSI, Luís P. e PIETROCOLA, Maurício.
Possibilidades dos filmes de ficção científica
como recurso didático em aulas de física: a
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uís Paulo Piassi é professor da Escola de
Artes, Ciências e Humanidades da USP, São
Paulo, SP. E-mail: lppiassi@usp.br
Maurício Pietrocola é professor da Faculdade
de Educação da USP, São Paulo, SP. E-mail:
mpietro@usp.br
Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007
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